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segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Ginástica - uma crônica de Rubem Braga, em março de 1944

Ginástica (Crônica de Rubem Braga, de 1944)


Foi denunciado ao Tribunal de Segurança o contramestre de uma fábrica de tecidos de São Paulo que é acusado de “greve branca”. Isto consiste –diz o jornal- em provocar o desgaste da maquinaria. Apesar de não diminuir a produção da fábrica, o contramestre teria feito com que se alterasse a sua qualidade, tornando-a inferior, e se desgastassem as engrenagens, o que é um sério prejuízo em um momento em que a importação é tão difícil.

Está visto que eu não sei se a acusação é verdadeira. Deve, em todo o caso, ser uma acusação difícil de provar. É verdade que o Tribunal de Segurança, sendo um tribunal de exceção, acima ou fora das regras jurídicas vulgares, do gênero das que ingenuamente me dei ao trabalho de aprender (ou “colar”) nos saudosos tempos da Faculdade, lavras suas sentenças muito mais à vontade que uma corte de justiça comum. Não será de admirar, portanto que o homem vá para a cadeia. Se realmente praticou o crime, nada me parece mais justo. Um crime contra as máquinas é sempre uma coisa repugnante, pois as máquinas não devem ser culpadas das extorsões e opressões que os homens praticam, utilizando-as.

E nós, no Brasil, temos bem poucas máquinas para que nos possamos dar ao luxo de estragá-las. O tipo mais abundante de máquinas que possuímos -e assim mesmo em número inferior ao necessário - é dessas máquinas a que chamaremos, com uma certa boa-vontade, humanas. E eis um problema a meditar: o desgaste que se faz, no Brasil, nas máquinas de carne e osso. Vá o leitor assistir de manhã ou de tarde, a uma partida ou chegada dos trens suburbanos em que viajam essas máquinas de carne e osso. Ali, sim, é possível observar o desgaste violento, quase aflitivo, das maquinarias. É difícil acreditar que estamos ali diante da mesma espécie de animal que se exibe nas areias de Copacabana. A maioria das mulheres e dos homens, inclusive das crianças, tem um ar de coisa usada – a abusada. Uma infinidade de gente mal-acabada e maltratada, um rebanho triste de povo fraco ou doente, cujas caras refletem aborrecimento e necessidade - e onde brilha apenas, raro e raro, a beleza viril de algum rapaz atlético ou a graça fresca de alguma jovem morena. E até esses bons exemplares despertam melancolia, parecem incapazes de resistir durante muito tempo, são arvores sãs numa plantação que a praga de mil dificuldade e deficiências vai estragando.

É que as criaturas humanas são máquinas muito delicadas - e não há outras máquinas neste país de que se cuide menos. Pobres máquinas de carne e osso! Para mantê-las em bom estado de funcionamento, para que rendessem mais e durassem mais, seria preciso que recebessem, na ração que a Vida lhes oferece todo dia, um pouco mais de carne e um pouco menos de osso- desses ossos inumeráveis que a maioria de nossa gente tem de roer com tanta fúria e tão maus dentes, e daquela carne que não é apenas a que tantas vezes não existe no fim das intermináveis filas, mas também tudo o que na vida tem sustância e sangue, as alegrias mais naturais e necessárias ao corpo e à alma a que todos têm direito e tão poucos têm acesso.

E dizer que outro dia eu li um artigo de um cavalheiro, no jornal, dizendo que o nosso povo precisa se fortalecer fazendo ginástica! Ah, ginástica, ginástica! Ginástica para viver, ridícula e patética ginástica que tanta gente faz todo dia simplesmente para isso: para continuar. Ah, ginástica! Isso cansa, meu caro senhor, isso cansa.

Março, 1944.